quinta-feira, 28 de outubro de 2010

OAB e Estado laico


Em publicação no último sábado no jornal O LIBERAL, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Pará, assinou um documento que chamou de "Manifesto em defesa de um estado laico". No texto, por motivos humanitários, defende o aborto e a união homoafetiva, ao tempo em que denuncia o uso desses temas para fins eleitorais e acusa, anonimamente, certos grupos da prática de intolerância religiosa. Sobre isto, nossa palavra de hoje.
Há muito se tem debatido a questão do estado laico no Brasil. De fato, somos e devemos ser na letra da lei uma nação sem credo oficial. Porém, em sua essência, estamos muito longe dessa fórmula simplista. E estamos assim porque somos um povo assaz religioso. Religioso desde o Descobrimento. Religioso, pela catequese portuguesa e pelas nações africanas escravizadas em nosso chão. Pela doutrina espírita de Chico Xavier. Religioso, por causa da maior igreja pentecostal do mundo, a Assembleia de Deus, curiosamente gerada em Belém do Pará, e assim por diante.
Alguns doutrinadores tendem a comparar o Brasil com certas nações europeias. Mas não podemos compreender um povo sem estudar sua origem. Nunca seremos semelhantes à França, Alemanha ou Holanda. Temos processos históricos distintos. Neste compasso, é preciso entender também que religioso é igualmente cidadão. Como separar os religiosos paraenses de sua condição de agentes da sociedade? Como pregar um estado laico no meio de milhões de pessoas caminhando no Círio, entre elas, várias autoridades públicas? Laicismo deve existir apenas do ponto de vista formal. Nunca haverá uma neutralidade plena, pois cada um leva consigo suas crenças aonde vai. Religioso e eleitor são uma única pessoa.
Se é verdade que igrejas não devem se imiscuir em política partidária, não é justo afastá-las do debate social. Afinal de contas, sua membresia é constituída de cidadãos. Afinal de contas as igrejas realizam excelentes serviços sociais, exercendo um papel que o próprio estado muitas vezes despreza. O que dizer das creches? Dos centros de recuperação de viciados, escolas, hospitais e outras iniciativas que deveriam ser acobertadas pelos impostos que todos pagamos?
Não é de se esperar que a OAB pregue a liberação do aborto, sob o argumento de precariedade sanitária do ato e falta de planejamento. É de esperar que a sociedade civil organizada lute pela educação e melhores condições de vida. Se um milhão de mulheres abortam arriscadamente todos os anos no Brasil, como diz a OAB, precisamos despertar o estado a fomentar políticas públicas verdadeiras. Não devemos ignorar, igualmente, esse milhão de brasileiros condenados à morte. Isto é uma terrível contradição de quem deve defender a vida. Isto é pregar a liberdade da mulher, sem dar ao feto o mínimo tratamento de dignidade. Todos têm direito à vida. Nossa legislação já protege a mulher vítima de estupro e em risco de morte. Quem fala pelo nascituro?
A respeito dos direitos homossexuais, nada contra a garantia dos contratos cíveis. Todas as pessoas têm direito de ser acolhidas e respeitadas. Mas não se venha tolher a liberdade de expressão religiosa. Não queiram rasgar as páginas da Bíblia que condenam a intimidade entre pessoas do mesmo sexo. Para isto, o Brasil teria de deixar de ser um país cristão. O mesmo direito que ativistas homossexuais têm de apregoar suas preferências publicamente, cristãos têm de sair às ruas, inclusive nas eleições, para dizer que no princípio Deus criou macho e fêmea. O contrário é cerceamento de liberdades. Tolerância não implica anulação do senso crítico.
Depois de impedir que a mulher adúltera morresse apedrejada, Jesus disse-lhe: “Vai, e não peques mais.” Isto é a síntese do cristianismo.
O manifesto da OAB classifica como intolerância religiosa a grita de parte das igrejas contra os temas acima. Afirma que se trata de favorecimento a "determinados candidatos". Não acho essa uma declaração correta, quando sabemos identificar com clareza quais candidatos eram, foram ou voltaram a ser contra ou a favor da descriminalização do aborto e de criminalizar a homofobia. Isto não soa bem numa semana eleitoral decisiva. É paradoxal.
Por fim, uma nota de apreço ao manifesto quanto à supervalorização da temática. De fato, o debate ficou bastante empobrecido quando os religiosos entraram em cena. Não estamos elegendo presidente apenas para isso. As igrejas e seus líderes, ao lado da OAB, devem sempre lutar pelas questões de cidadania. Seria bom também que líderes religiosos cuidassem dessas questões durante o ano inteiro. Isso evitaria que ocupassem espaços em programas eleitorais. E, quem sabe, esse tipo de manifesto.

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RUI RAIOL é escritor (www.ruiraiol.com.br)

2 comentários:

Anônimo disse...

O pastor faz seu proselitismo e esbarra na verborragia. O Brasil não é, como ele diz, um país cristão. O Brasil é um país cristão para os brasileiros cristãos, um país muçulmano para os brasileiros muçulmanos, um país judeu para os brasileiros judeus,um país afrorreligioso para a grande maioria dos brasileiros, afrodescendentes, um país ateu para os brasileiros ateus. Nenhuma seita religiosa tem o direito de exigir que a legislação impeça a diversidade religiosa ou que imponha seus valores religiosos, baseados em dogmas criados por seus líderes para exercer o domínio sobre os humanos. A OAB está de parabéns e todos os brasileiros decentes deveriam abraçar essa causa.

làm duoc digamet disse...

Parabéns ao escritor Rui Raiol pelo ponto de vista exarado.

É isso aí. Os intelectuais devem sempre participar do debate das questões de interesse da sociedade.

Também penso que nunca existiu um Estado laico,no sentido estrito do termo (e nunca existirá). O fenômeno religioso está intrinsecamente ligado ao homem gregário.

A religião sempre esteve direta ou indiretamente trabalhando com o poder. O que seria do "Estado laico" se a religião não abservesse os não assistidos pelo poder público. E o que seria daquela se não existissem desassistidos.

O poder une os aparentemente desiguais, mas o senso comum não percebe. ele está na superfície, no campo da aparência.

Walber Wolgrand - Filósofo.