segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Amor e ódio com igual intensidade


Dia desses, a certa altura, disse a mim mesmo, que gostaria de ter escrito sobre acontecimentos que povoaram meu imaginário cotidiano, nos anos 1960. Principalmente, por se tratar de uma época de grande convulsão social. Não era para ser. Não sei se teria a malícia exegética encerrada na minha escrita. Afinal de contas, nesses tempos existia a política do tudo ou nada. E um dos políticos que chamava muita atenção era Carlos Lacerda (ao lado), em 1963, quando governador do Estado da Guanabara. Ele tramou golpes para chegar ao poder, mas terminou a carreira de político como um derrotado.
Em 1955, Juscelino Kubitschek foi eleito presidente da República, Lacerda defendeu a anulação das eleições. JK não havia feito maioria, seu meio milhão de votos sobre Juarez Távora eram votos dos comunistas. Às favas com o jurisdicismo da ala legalista da UDN. O caso era apear JK, e João Goulart, seu vice, do poder. Lacerda tinha pressa. Era o passional da política.
Nos manuais de história, ele é o corvo da Terceira República - o apelido foi dado pelo jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Pegou. O corvo é uma ave agourenta. No famoso poema do poeta americano Edgar Allan Poe (1809-1849), ele é o mensageiro da inevitabilidade da morte. Lacerda ganhou o epíteto pela agressividade, quase às bicadas, com que atacava os adversários políticos. O estilo o colocou no centro das mais conturbadas passagens - o suicídio de Getúlio Vargas (1954), a renúncia de Jânio Quadros (1961) e o golpe que derrubou João Goulart (1964) - de um dos mais tumultuados períodos da história brasileira, entre as décadas de 1950 e 1960.
Na verdade, o comunismo, hoje, é um espantalho, e o moralismo católico saiu de moda. À época, dava audiência e um bocado de votos. O mundo andava em transição, nos anos 1950 e 1960. A juventude lia Jack Kerouac e experimentava a liberdade sexual que a pílula oferecia, mas expressões como o "perigo vermelho" e a "destruição do nosso modo de vida" mexiam com a cabeça das senhoras de Copacabana. Lacerda soube ser seu porta-voz. Suas posições, naqueles anos, são bem conhecidas - e não são isentas de contradições.
Em 1964, liderou a mobilização golpista no Rio de Janeiro, com sua metralhadora INA a tiracolo, desde o Palácio Guanabara. O fato é que Lacerda fez do "golpismo democrático" a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o "lacerdismo", uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em pôr em xeque as instituições da República quando interessa. Uma arte sem ideologia, frequentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda. A vida de Lacerda foi a recusa permanente do acordo. A vocação de seu charme, quem sabe, fez com que conseguisse, a partir de 1966, uma improvável reaproximação com JK e JG, para a formação da Frente Ampla, em oposição ao regime militar. Também foi derrotado. Em 1968, logo após a decretação do AI-5, Lacerda teve seus direitos políticos cassados por dez anos.
Sua paixão definitiva foi o jornalismo de combate, o articulismo enragé, tradição hoje desaparecida, pois nenhum governante perde o sono em função de um artigo de jornal. Escreveu um livro apresentando sua visão sobre o jornalismo, "A missão da imprensa", em que faz uma candente defesa da independência do jornalismo diante dos governos e grupos de poder, a profissionalização do jornalista, o rigor na verificação das fontes. É evidente que esse não foi o caso de seu jornal, a Tribuna da Imprensa.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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